Feliz Natal!

Quando o cavaleiro acordou, apenas encontrou escuridão à sua volta. Conseguia ainda sentir o cavalo debaixo de si mas, estranhamente, não lhe distinguia um movimento mínimo, nem a respiração, nem um esticão de pele para afastar as moscas, nem o pescoço maciço a virar-se todo para um lado ou para outro. Na verdade, o cavaleiro não conseguia distinguir os seus próprios movimentos, tentava lançar um braço para a frente, tinha a sensação nítida de estar a fazê-lo, mas não conseguia sentir esse gesto simples. Fazia como se estivesse a tocar o seu corpo, passava as mãos pelo peito, sabia-se a fazer esse movimento, mas nem sentia as mãos no peito, nem sentia o peito nas mãos. Chegou a pensar que ainda estava adormecido. Talvez estivesse num daqueles sonhos em que se consegue ter a consciência de estar a sonhar. Esses sonhos tornam-se mais nítidos e reais no momento em que está quase a acordar. Este pensamento acalmou o cavaleiro. Quase adormeceu de novo enquanto esperava por acordar daquele sonho. Então, pareceu-lhe que não podia adormecer dentro de um sonho e, assim, concluiu que não podia estar a sonhar. Foi então que pensou que estava morto. Essa conclusão foi um instante de pânico seguido por uma tranquilidade absoluta. Se estava morto, para quê preocupar-se? Tinha pena daquilo que gostaria de ter feito, mas tinha a memória das muitas coisas que conseguiu fazer. Habituou-se à ideia de estar morto. Depois, aos poucos, foi-se aborrecendo da morte. Não acontecia nada dentro da escuridão. Era um negro opaco, sem qualquer quebra. Nessa falta de novidades, havia apenas o som. Em muitas ocasiões, o cavaleiro dirigia toda a atenção para o som. Aquilo que ouvia deixava-o perplexo. Distinguia claramente vozes de pessoas. Mas não conseguia perceber qual era a língua que falavam. Incansável, o cavaleiro tinha percorrido todo o reino. Durante todos esses anos, nunca tinha escutado nada que se assemelhasse àquela língua. Era o outro mundo, pensava, era a morte. Seria aquela a língua dos anjos? O cavaleiro não sabia. Chegou também a pensar que poderia estar cego. Mas, se assim fosse, porque estaria montado no seu cavalo completamente suspenso? O cavaleiro tinha muitas perguntas. Tinha poucas respostas. Ia esperar. Não havia mais nada que pudesse fazer. Inquieto e imóvel, observava a escuridão.

De repente, a escuridão rasgou-se. O cavaleiro de madeira, montado no seu cavalo, chegou às mãos do menino. As cores da árvore de Natal, por trás, brilharam mais nesse momento por efeito do rosto do menino. O avô, sentado a pouca distância, dizia-lhe: calma, devagar. O avô sorria e o presente que ele próprio recebia era poder assistir ao entusiasmo com que o neto segurava no cavaleiro de madeira, imaginando-lhe aventuras. O pai estava no outro lado da sala. Talvez a cidade existisse por detrás das janelas. Ninguém poderia saber ao certo. A mãe aproximou-se do avô, seu pai, e sorriu-lhe. O menino veio a correr e mostrou-lhe os pormenores com que o cavalo e o cavaleiro tinham sido esculpidos. Nesse dia de Natal, o menino tinha quatro anos. Mais tarde, já adulto, haveria de ter uma memória, distorcida, daquelas horas. Essa seria uma memória feita de tempo morno. Adulto, quando visitava a mãe e passava pela moldura com a fotografia do avô, pendurada no corredor, sentia ainda o conforto daquela manhã, o amor. O cavaleiro de madeira acompanhou-o ao longo de toda a infância. As suas cores foram-se desbotando. Os pormenores do rosto e das mãos foram-se lascando. Adulto, segurava o cavaleiro de madeira dentro das suas mãos de homem e conseguia ver-lhe as imperfeições, mas conseguia também vê-las cobertas por tudo o que tinha descoberto naquele dia de Natal. O avô tinha conversas com a mãe e sorria ao vê-lo brincar no chão da sala. Às vezes, o pai chegava com braçadas de lenha que, ao longo das horas, ia dispondo na lareira. A felicidade existiu em todos os pormenores daquela sala. O tempo iria decantá-la pelas vidas que ali se reuniram e que ali celebraram a sua reunião.

Gostaram?, perguntou a mãe. Não percebi a última frase, disse a Patrícia. O que significa “decantá-la”?, perguntou a Inês. As gémeas estavam tão despertas depois de ouvirem a história como tinham estado antes de a começarem a ouvir. A mãe fechou o livro e, antes de explicar, puxou-lhes os cobertores sobre o peito. Então, disse-lhes: o que a última frase quer dizer é que eles estavam muito felizes por estarem juntos, que isso é que era importante e que essa felicidade continuou com eles durante todas as suas vidas. As gémeas não mexeram o olhar, continuaram a fixar a mãe. E se fechássemos a luz?, perguntou. Estava cansada. Tinha sido um dia longo. Mãe?, chamou a Inês. Sim?, disse a mãe. E a Inês fez-lhe perguntas sobre os presentes. A Patrícia também fez perguntas sobre os presentes. A mãe sempre se admirou com o modo como as gémeas tinham exactamente as mesmas perguntas para fazer. Era como se uma e outra soubessem exactamente as mesmas coisas. A mãe disse que, na manhã seguinte, quando abrissem os embrulhos, logo saberiam. Disse que, naquele momento, não valia a pena estarem a preocupar-se com isso, o melhor seria descansarem bem porque, quando acordassem, haveria muito para brincar. As gémeas conformaram-se com esta explicação e, a Patrícia primeiro, a Inês depois, fecharam os olhos. A mãe afastou-se devagar, as meias sobre a alcatifa, e, quando encostou a porta, olhou para os vultos a respirarem longamente sob o cobertor. Com cinco anos, as gémeas estavam muito crescidas. A mãe chegou à cozinha. Os azulejos brancos reflectiam a luz da lâmpada fluorescente. A mãe tirou uma caneca do armário. Era uma caneca de loiça, gasta pelas lavagens da máquina, as cores esbatidas. Do frigorífico tirou um pacote de leite. Encheu a caneca e colocou-a no micro-ondas. Ficou a olhar para ela enquanto rodava, iluminada, como uma caneca que fosse bailarina num palco de vidro. Plim: o toque demasiado alto, demasiado estridente do micro-ondas. A caneca estava a escaldar, mas o leite estava apenas morno. Mexeu-o com uma colher. Então, sentou-se numa cadeira, ao lado da pequena mesa da cozinha onde pousou o cotovelo. E assim ficou, em pijama, de meias, a beber leite morno e a olhar para o ar.


In Abraço, Quetzal Editores, 2011

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